Há quatrocentos e tantos anos vivia uma família de lavradores no imenso vale do Carinhanha, perto de Cocos, no estado da Bahia. Constituía-se opequeno grupo de três pessoas: marido, mulher e um filho, rapazola de seus 12 a 14 anos.
O menino chamava-se Romão, ou Romãozinho. Era travesso e mentiroso; muitas vezes fora motivo de brigas em casa, pois contra a mãe imaginara enredos, bem forjados, para contá-los ao pai,homem trabalhador e honesto, mas grosseiro o mais que podia. Acresce ainda que acreditava sempre nas invencionices do filho, suposta vítimade maus tratos nunca havidos.
Certo dia, a mãe de Romãozinho determinou que ele fosse à roça levar almoço ao pai. O menino tomou oprato e partiu. Na primeira curva, porém, assentou-se num toco e devorou toda a comida, deixando para o pai apenas os ossos da galinha que sua mãe cozinhara naquele dia. Ao chegar ao destino entregou oprato ao pai, como se nada houvesse acontecido. Calmamente, o homem encosta o machado, asenta-de à sombra do arvoredo e descobre o prato afim de matar a fome. Ao verificar o logro, pergunta ao filho o que representava aquilo. Romãozinho, vestindo-se de anjo, responde-lhe quenão sabia, pois da mesma maneira que recebera o embrulho da mãe, lh'o entregara. Podia adiantar apenas que, naquele dia, havia sido preparado arroz com galinha.
O pai de Romãozinho regressou à casa, imediatamente, e lá não quis saber de explicações. Chicoteou a esposa o mais que pôde.
A pobre mulher, vendo-se castigada assim tão injusta e degradantemente em vista da traição da parte do menino, filho de suas entranhas, ajoelha-se ali mesmo e exclama com as mãos para os céus:
— Deixe estar, Romãozinho, que você não terá o céu, nem o inferno. Tenho fé emDeus, meu filho, que você há de ficar zanzando pelo mundo, a aborreceras pessoas na terra!
Era a praga da mãe contra o filho maldito.
Naquele mesmo instante morria Romãozinho.
E passou a cumprir a sentença.
Até hoje ele existe, se bem que conhece o mundo inteiro, pois dá notícias de tudo e de todos.
Não gosta de cidades. Prefere a vida das fazendas, principalmente os arredores de Januária, Manga, Poções, Cocos e Imburanas.
Costuma chegar a um sítio e lá ficar muito tempo, cometendo estrepolias.
Respeitamuito as donas de casa e as ajuda nos serviços domésticos, rachandolenha, carregando água, lavando vasilhas na fonte, ou varrendo a casa eos terreiros. Serve de mensageiro, levando cartas a pessoas distantes e, quando lhe pedem, arranja dinheiro emprestado, retirando-o de cofrese gavetas de algum ricaço alhures, voltando a colocá-lo no dia marcadopelo seu solicitante e benfeitor, no mesmo lugar e da mesma forma, istoé, às escondidas.
E ai de quem faltar com a palavra!
É invisível, mas sua presença é notada por seus assobios, ou quando trabalha, pelo movimento dos onjetos que utiliza.
Quandoo aborrecem, comete desatinos, atirando pedras no telhado, quebrando pratos, enchendo as panelas de estrume de gado, às vezes nela satisfazendo suas necessidades fisiológicas.
Gosta de freqüentarolarias e modelar grosseiros trabalhos de cerâmica. Se não lhe amassamo barro, zanga-se e danifica os tijolos frescos sulcando-os com osdedos, ou esborrachando-os com os pés.
Sente fome e sede comoqualquer vivente e reclama a sua alimentação na hora certa, primeiroque todos. Do lugar de costume, Romãozinho apanha a comida e se dirigea alguma sombra próxima. As pessoas vêem o prato suspenso, na alturadas mãos de um rapazinho movimentar-se rumo ao lugar escolhido. Não gosta e nem admite que se preparem galinhas.
Nunca envelhece e continua pensando e agindo como dantes fora.
Dizem, até, que adoece e, quando leva uma estrepada, um ferimento qualquer, uma contusão, procura ele o remédio, às vezes chora e soluça.
(Martins, Saul. "Romãozinho". O Diário. Belo Horizonte, 19 de março de 1950)